Fazem dois meses que comecei o processo proposto pela leitura do livro O Caminho do Artista, de Julia Cameron. Sabe aqueles livros que você sabe que quer ler, mas adia para sempre? Esse era um deles. Estava na minha pilha faziam anos. Já ouvi algumas leitoras falarem o mesmo sobre A Jornada da Louca: deixam na estante, a espera. Há um tempo certo para certas leituras, o que é uma coisa meio mágica, já que o livro tem esse poder de transformação e sabe quando deve se conectar com a gente.
A motivação em ler O Caminho do Artista veio de uma investigação bastante catártica sobre onde está, quem é, como é, o que bebe, come, pensa, e veste, meu pedaço artista. Depois de passar por um período de luto que parecia não acabar – e que ainda pode ter deixado camadas – percebi que esse pedaço artista, escritora, que vinha e voltava, que às vezes parecia fugir ou se esconder, ainda não era muito bem compreendido. Essa investigação tem passado por muitas horas de reflexão e terapia, e, de todas as maravilhosas descobertas, quero compartilhar uma especial, reforçada por Julia Cameron.
Antes de continuar, é bom deixar claro que você, que talvez não se considere artista e pense que essas palavras não são para você, pode estar enganado; é bom lembrar que a energia da criatividade está em todos nós. Ter a criatividade bloqueada significa estar desconectado do fluxo natural da expressão criativa e a expressão criativa é a expressão da vida.
Estar em processo de recuperação criativa é como se um pedaço do nosso corpo precisasse reviver. Precisamos tomar uma poção, como aquela do Harry Potter, a poção Skele-Gro, que faz os ossos crescerem novamente. Nesse caso, a poção é a consciência, e também a prática, a constância, os movimentos, e pode ter ingredientes bastante únicos para cada tipo de pessoa.
Enquanto vamos nos tornando sãos, e voltando a ter um braço, uma perna, um sorriso, podemos nos sentir um pouco loucas. É como se, para nos recuperar e estar bem no nosso estado criativo natural, a gente sentisse que está enlouquecendo, porque passamos tanto tempo bloqueados, sem uma parte de nós, que estar saudável pode ter a aparente sensação de estar perdendo a razão.
Penso que, em sociedade, a perspectiva do que é ser um ser normal, saudável, por inteiro, está distorcida. Machado de Assis elaborou os limites entre loucura e sanidade lindamente através de Simão Bacamarte no conto O Alienista, você lembra?
"Simão Bacamarte resolveu estudar os fenômenos da mente humana, e concluiu que muitos dos que se julgavam sãos padeciam, na verdade, de distúrbios mentais. Internou, então, diversas pessoas, em nome da ciência, no seu hospício, a Casa Verde. Entretanto, com o passar do tempo, a definição de loucura e normalidade foi se expandindo, até incluir a maior parte da população de Itaguaí, o que gerou revolta e confusão. Bacamarte chegou a uma conclusão extrema: 'A loucura, objeto de meu estudo, reside precisamente onde queríamos que residisse a razão.'”
Perceba que não estamos falando de um tipo de disfunção que pode significar escapar da realidade, como acreditar que a terra é plana, ou abusar em excesso de entorpecentes. Estou falando daquela loucura que talvez não seja loucura, e que só é vista como loucura, na normalidade banal da vida mundana.
A loucura criativa vem com perguntas como: e se eu começar aquele curso que sempre quis fazer? E se eu declamar minha poesia para esse grupo? E se eu dançar na roda de samba? E se eu conversar com essa pessoa que admiro muito? E se eu fizer uma exibição numa galeria? E se eu for nessa viagem? E se eu ouvir essa vozinha que fica me dizendo para seguir em frente com essa ideia?
É curioso como acabo voltando para a energia da Louca, a protagonista do meu primeiro livro. Talvez o arquétipo da Louca seja tão necessário num mundo que está constantemente nos espremendo em caixinhas do que é ser normal.
Por isso, trago um convite. E se você listar cinco coisas que você quer muito muito fazer, com o potencial de desbloquear seu fluxo criativo, mas que no fundo acha uma loucura? Lembre-se: não pode ser algo que te faça escapar da realidade, que te machuque, ou que invada a liberdade de outras pessoas.
Então, coloque suas meias amarelas, e encare essas loucuras, com os teus olhos de coruja. Talvez você acorde a qualquer dia estatelada numa calçada por aí…
Reunião ao ar livre com a artista, Richmond Park, Outubro de 2024.
De volta às palavras
As folhas das árvores lentamente vão deixando de ser verdes, adquirindo uma cor amarelada. Algumas se tornam alaranjadas, outras vermelho-bordo, e mesmo douradas. Foi no meu primeiro outono no hemisfério norte, há cinco anos, que o mistério das folhas que caem me inspirou a escrever o primeiro texto nesse estilo, que eu chamava, então, de Crônicas de Uma Mulher Selvagem. Talvez as folhas tenham um efeito sobre nós. Estava indo comprar pão num domingo pela manhã, caminhando entre elas, e senti a necessidade de voltar a me comunicar aqui.
– O segredo das folhas sopra um desejo criativo.
E eu penso, que bom, esse nosso reencontro.